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Nas sextas-feiras, os bares todos estão preparados para
viverem sua grande noite. Há expectativas por parte dos proprietários, dos
funcionários e, principalmente, dos clientes. Com o Farândola – Barzinho
Encantado - não é diferente: jogamos todas as fichas nessas noites, e boa parte
delas nas dos sábados.
Nas sextas-feiras, os mais animados já saem de casa pela manhã com um astral
diferente, vestem-se mais caprichadamente. Bolsa de mulher já é um verdadeiro
mini-mercado, e nas sextas então, nem falar. Tem de tudo um pouco: perfume,
absorvente, batom, espelho, pinça, tesourinha, lixa de unha, algodão,
neosaldina, lexotan, livro de poesia, camisinha, carteira, celular, caderno de
anotações, caneta, estojo de maquiagem... e por aí vai. Já os preparativos dos homens,
restringem-se quase que exclusivamente à confirmação do saldo bancário, a
carteira e o celular. Camisinha, nem sempre.
A noite de sexta é a mais indicada para a caça. Homens e mulheres solitários invadem os bares à procura de companhia. Os bares são os “facilitadores” das aproximações desses seres esperançosos. Em seus locais de trabalho ou no ciclo de amigos, essas possibilidades esgotam-se em pouco tempo. Já nos bares, a proximidade das cadeiras permite a escuta do papo da mesa ao lado e uma possível participação nele; os olhares se cruzam, se encontram, estacionam. Produzem leves sorrisos que também autorizam a aproximação dos que estão em mesas mais distantes. Estabelecido o papo, surgem os primeiros e tímidos toques na mão, no braço, no joelho... A dança, quando acontece, permite que os pavios se inflamem ainda mais: o toque é mais completo, o perfume sentido, as palavras sussurradas. Os primeiros drinques, agora já no comando, autorizam um beijo na face, no olho, nos lábios.
As horas vão passando e a energia do bar vai
mudando, apesar dos incensos acesos ininterruptamente. Passa então a predominar
um clima de leve pecado. Os novos casais já estão constituídos. A excitação
aumenta e cada um agora se permite expor um pouco da sua vida pessoal ao novo
parceiro: filhos, antigos relacionamentos (só de passagem), endereço,
telefone... coisas assim. Os beijos, agora mais intensos e permissivos, começam
no interior do bar e vão acabar entre os carros estacionados em frente. No
final da noite, quando fechamos o bar e saímos atentos à lista de compras para
o dia seguinte, percebemos que alguns carros continuam lá, estacionados, no
mesmo local onde foram deixados por seus agora apaixonados donos. Alguns com
seus motores em funcionamento, ar ligado e vidros protegidos por escura
película; outros, silenciosos, sem película, mas com os vidros completamente
embaçados.
Outros casais saíram mais cedo, a procura de locais mais
confortáveis. Outros, ainda, com os celulares em punho, incluem mais um número
em suas agendas e partem para uma nova caçada, talvez ainda em outro bar, ou
vão dormir e sonhar com o que imaginaram estar acontecendo dentro dos carros
que permaneceram no estacionamento, inclusive os que só seriam apanhados por
seus donos no dia seguinte.
Mas, as noites de sextas-feiras não são exclusividades dos caçadores. Casais já
enamorados fazem suas reservas desde cedo; aniversários e despedidas são
programados para o barzinho preferido; os casais desfeitos chegam separados, e
vivem uma noite angustiante até caírem nos braços um do outro mais uma vez.
Quando esse retorno não acontece, retornam num outro dia, em nova companhia,
com a expectativa de não encontrarem o antigo parceiro, e terem a oportunidade
de mostrar aos clientes tradicionais e aos que trabalham naquele bar, que não
estão mais sozinhos... que já estão em “outra”, embora seus olhos digam o
contrário. Há também os que encontraram aquele bar casualmente, e os que
resolveram conferir indicação de um amigo, ou estão sendo levados por eles
mesmos.
É uma festa semanal onde, a única certeza que se tem é o endereço do bar
escolhido. Já para os que fazem o bar, tudo o mais é imprevisível, apesar de
programado: quem serão os clientes daquela noite, quais as bebidas que serão
mais vendidas, quais pratos serão os mais escolhidos?... Será uma noitada
animada, com assovios e gritos de “cazá-cazá” ou “n-a-u-t-i-c-o”? Os músicos
estarão inspirados e aparecerão outros para dar “canja”? O estoque será
suficiente, faltará água, jogarão algum rolo de papel higiênico no vaso, alguém
se excederá na bebida? Tudo isso e muito mais é possível, inclusive a
incapacidade de algum jovem para dirigir seu carro ao final da noitada,
levando-me a assumir o comando daquela situação de risco, e providenciar para
que chegue seguro em sua casa.
Todas estas incertezas terminam por causar alguma ansiedade, mesmo depois de
dezesseis anos vivendo a madrugada.
Naquela sexta-feira, Bete chegou pela primeira vez ao Farândola e estava
acompanhada de uma amiga que já era nossa cliente. Escolheram a mesa mais ao
fundo, bem próxima ao palco e resolveram saborear nosso coquetel “Fuzuê da Sé”,
que leva vodka e frutas bem típicas do nordeste, como umbu, sirigüela, cajá,
carambola, pitanga, umbu-cajá... além de goiaba, uva, acerola, tangerina –
todas maceradas, além de xarope de açaí. Cada uma tomou dois desses e depois
mudaram para cerveja.
Bete era uma “morena-jambo” de pernas bem torneadas que ficavam à mostra em sua
mini-saia. Usava uma blusa de decote generoso e, sempre que passava por mim,
fazia questão de elogiar o bar e dizer que estava saindo da maior fossa, que
terminara há poucos dias um noivado de cinco anos e que, agora livre, queria só
curtir. Quando o Trio Pau Pereira entrou na parte mais animada do show, com
sambinhas de Chico Buarque, Bete resolveu provar das nossas cachaças
temperadas: tomou umas três sem dar tempo da anterior “sentar”. Depois resolveu
dançar, mesmo desacompanhada. Entre uma música e outra ia até sua mesa e virava
uma cachaça. Percebi o problema que se formava e resolvemos demorar no
atendimento a cada novo pedido dela. Sua amiga também estava “entornando”, mas,
com um pouco mais de cuidado.
A partir das duas da madrugada o bar muda de cara outra vez. Mais da metade dos
clientes já deixou a festa, enquanto outros, que naquela noite preferiram outro
bar, chegam para matar as saudades do nosso Farândola e tomar a saideira. Quem
chegou alegre já está eufórico, e quem chegou pensando em tomar algumas para
esquecer alguém, ou para mostrar que não está nem aí pra quem lhe deixou, geralmente,
a partir desse horário, não se segura mais e mostra sua dor, sua saudade...
Bete agora fazia os pedidos construindo as frases lentamente e pronunciando
cada palavra com toda atenção, para não demonstrar que já estava de foguinho.
Com os cotovelos sobre a mesa, pedia sempre a mesma música ao Trio Pau Pereira
e, quando era atendida, dizia que eles não haviam tocado e exigia que eles a
atendessem. Já se aproximava as três horas da manhã e, por mais que tentássemos
encerrar o show, Bete levantava-se aos gritos pedindo mais uma música.
Acostumados com a madrugada... seus encantos... sua dores.... sempre
encontramos um jeitinho de atender a todos e de nos anteciparmos aos problemas
mais corriqueiros. Bete e sua amiga, com certeza não viriam a ser nenhum
problema, apenas exageravam um pouco na bebida. Seu comportamento até então
havia sido manso, discreto até, apesar da insistência com aquela música de
roedeira.
O Farândola é dividido da casa de dona Maria – proprietária do imóvel – por uma
parede de alvenaria - construída por nós - e outra de madeira - já existente.
Apesar de gostarem muito da música do bar e dizerem que não se sentem
incomodados por ela nem pelo burburinho, sempre tomamos o maior cuidado quando
o show termina, pois sabemos que seus sonos passam a ser mais profundos e
incomodaria muito acordarem com o barulho de mesas arrastando, tilintar de
copos, talheres e louças. Terminado o show, iniciamos as providências para o
fechamento do bar e já alguns preparativos para o movimento da noite seguinte.
Encerradas essas tarefas, percebi que a mesa delas duas era a única ainda
ocupada. Todos os clientes e músicos já haviam saído, e apenas eu e os
funcionários, todos ocupados com suas últimas tarefas, permanecíamos no bar.
Quando sua amiga mostrou-lhe a conta, Bete gritou: - O que!!! Isso tudo!!! –
Resolvi então ir até lá pra mostrar-lhes detalhadamente a que se referia aquele
total. Bete não quis ouvir: - Mas nós só tomamos duas cervejas!!! Ta querendo
roubar, é?! – Sua amiga piscou um olho para mim e pediu para que me afastasse.
Procurou seu talão de cheques dentro da sua enorme bolsa, e nada. Virou pra cá,
virou pra lá... e enfim lá estava ele, entre toda aquela tralha. Quando iniciou
o preenchimento do cheque, Bete aos gritos de “não assina não!... não assina
não!...” empurrou sua mão e rasurou o cheque. Agora, sentada em outra mesa, um
novo cheque começou a ser preenchido... Bete partiu de lá e fez a mesma coisa:
inutilizou mais uma folha de cheque aos mesmos gritos de “não assina não!...
não assina não!...”.
Estávamos todos impacientes, querendo ir embora e
finalmente descansar um pouco. Chamei sua amiga para vir até o balcão onde eu
estava e tentar preencher ali aquele cheque. Quando só faltava a assinatura,
Bete veio em sua direção. Tentei impedi-la tomando sua frente, mas ela passou
por mim como um trator, me empurrando para o lado aos gritos de “não assina
não!... não assina não!...” e rasgando a terceira folha de cheque. Tentei
conversar com ela, mostrando que a conta estava certa, quando ela cravou as
unhas nos meus braços fazendo-os sangrar. Fiquei puto! Segurei seus punhos com
força para que soltasse meus braços e ela, ao fazer força para solta-los, deu
um passo atrás quando a soltei, e tropeçou no palco que estava colado aos seus
pés, caindo sentada nele. Enraivecida, tentava levantar-se mas não conseguia,
pois postara-me colado aos seus joelhos, impedindo assim que atingisse seu
intento. Vendo que não ia conseguir mesmo se levantar dali, só lhe restou
gritar desesperadamente: “não assina não!... não assina não!... não assina
não!”... Uffa! Finalmente o cheque foi preenchido e Bete rebocada até o carro
da sua amiga. Já estava clareando quando fechamos o bar às gargalhadas, apesar
dos profundos arranhões nos meus braços.
Após as noitadas das sextas e dos sábados, consigo dormir apenas umas duas
horas e meia, tendo que sair para compras que só podem ser feitas em feiras de
bairros, e antes das sete horas, sob o risco de não mais encontrarmos os
produtos que queremos, deixando para depois do almoço o tempo maior de sono.
Naquela manhã de sábado, após as compras, dirigi-me para o bar. Antes de entrar
fui interceptado por dona Maria, a vizinha e proprietária do imóvel onde
funciona o Farândola, que foi logo me dizendo com olhos arregalados: “Seu Rodolfo!
Olhe, eu sei que o senhor não estava ontem aqui no bar não! Se não, não teria
deixado acontecer uma desgraça daquelas! Quando deu umas três horas da
madrugada eu me acordei com uma gritaria aí no seu bar. Uma mulher desesperada
gritava sem para! Tive que acordar todo mundo daqui de casa, as crianças e até
minha sogra de noventa e três anos que é paralítica. A gente pegou ela e botou
no chão. Mandei todo mundo ficar deitado no chão pra não levar um tiro, pois
tinha alguém querendo matar essa mulher, com um revolver na mão, enquanto ela
chorando, gritava sem parar: “não atira não!... não atira não!... não atira
não!...”
Bete desapareceu do Farândola e sua amiga também. Há uns quinze dias – depois
de uns dois anos – reapareceu, e lembrei-me de contar essa história aqui no
blog. Chegou acompanhada e apresentou-me como sendo seu ex-noivo e atual
namorado. Pediu a mesma música daquela noite ao Trio Pau Pereira e passou toda
a noite tomando água de coco, sentada e muito bem comportada.
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